Inicio pedindo desculpas pela
extensão do texto, mas não poderia ser diferente, pois eu estava lá.
Dia 26 de junho de 2013. E não
sei por que os jornais estão falando de trinta, quarenta mil manifestantes,
quando eu não tive como ter ideia do tamanho, pois ele extrapolava o
comprimento e a largura das avenidas. Eu arriscaria muito mais de cem mil e
tenho filmagens para confirmar. E eu que achava que os professores faziam
proeza em Minas quando conseguiam colocar dez mil nas ruas... Hoje, já revigorado do surto e dos sustos de
ontem, tentarei tecer algumas descrições e análises que vejo pertinentes neste
momento, sabendo que tudo, até mesmo minha opinião, estão muito instáveis e não
conseguem, nem mesmo, um panorama estável do que está acontecendo.
Estive lá e vi –digo, filmei – de
cima do viaduto do Hospital Belo Horizonte, último ponto alto da Antônio Carlos
com vista para o centro, e não dava pra ver o início da manifestação nem seu
final, com a avenida e os viadutos completamente tomados. Na passagem pelas
periferias da via, moradores que acenavam, muitas bandeiras do Brasil nas
janelas e muitas, muitas crianças participando. Debaixo de outro viaduto, vi
adultos e vi crianças que não participavam e permaneceram dentro de suas casas
de papelão. Provavelmente alguma família despejada para as obras da Copa. Inúmeros
cartazes que traziam as catarses sociais de nossos tempos. Como já havia dito
em outra postagem, compactuo com quase todos os cartazes e não vi desta vez
nada que atacasse os direitos humanos ou a diversidade; pelo contrário, muitos
estavam ali com bandeiras de partidos e sindicatos enquanto outros colocavam
num viaduto duas faixas gigantes clamando pelo direito dos animais. Uns fizeram
rapel de uma passarela e exibiram seus cartazes de cabeça para baixo. Nem
precisava dos cartazes, pois só o espetáculo já valia. Meu Deus, quando iriam
deixar uns loucos fazerem rapel em plena Antônio Carlos?
Pouquíssimo
policiamento. Um grande carnaval com muita música, palavras de ordem,
vendedores de água, refrigerante, cerveja e picolé. Alguns carros e pequenos
comércios vendendo churrasquinho e cachorro quente, justamente perto do viaduto
onde clamavam pelo direito dos animais. Vi dois indivíduos improvisados que
vendiam, de dentro de um lote baldio, marmitinhas e tropeiros por entre os
entulhos e a cerca semi-derrubada, num local tomado pelo mato. Uma festa
bonita, com muitas bandeiras vermelhas de partidos, movimentos sociais de base.
Nosso sindicato foi muito respeitado, a ponto de muitos manifestantes levarem
os balões e os botons que distribuíamos. Vi a galera do MST em peso, outros
sindicatos e movimentos sociais autônomos, como “os atingidos pela copa” e “os
atingidos por barragens”. Vi bandeiras pretas dos anarquistas, graças a Deus! Alguns
heavy-metals andando juntos e um grupo de darks com seus sobretudos pretos num
sol escaldante. Muitos meninos e meninas adolescentes, tirando fotos com pose,
provavelmente para postar no facebook. Uma diversidade interessante e, até mesmo,
desconcertante. Como pode, repentinamente, uma atuação tão massiva, com uma
variedade tão grande de segmentos sociais e esferas culturais? Não vi quase
nada sobre a questão indígena, nem sobre a obrigatoriedade do serviço militar e
do voto. Vi duas feministas completamente nuas, porém mascaradas e poucas
pessoas pichando frases contra a copa do mundo. Havia uma Penélope Charmosa
encapuzada, toda de rosa, empurrando um carrinho de supermercado rosa e ia
pixando de rosa suas causas no chão da avenida. Muita, mas muita diversidade
mesmo!
Mas, chegando perto do Mineirão, comecei a notar um clima mais tenso! O
carro de som que ia na frente seguiu direto, chamando para que não entrássemos na rua do Mineirão
(acordo feito com o governador no dia anterior) enquanto alguns poucos (penso
que uns 20 ou 30) manifestantes tentaram fazer um cordão de isolamento sem
sucesso. Assim, enquanto metade da manifestação, coordenada pelos sindicatos e
movimentos sociais ligados a partidos seguiram em frente para esbarrar no final
da avenida numa barricada policial, e ser obrigado a voltar pelo mesmo caminho,
a outra metade parou na região da UFMG e
muita gente (uns 5 ou 10 mil) subiu para chegar perto do isolamento de 2Km da
Fifa na “avenida proibida”. Aí foi o aval para começar o combate, já previsto
em manchetes da véspera, pela própria polícia, com anúncios prévios de
“tolerância zero” e “campo de guerra iminente”. Depois de alguns usuais (já
aceitos como normais pela mídia) tiros e explosões de efeito imoral e de armas
químicas de pequeno impacto (uai, achei que elas eram proibidas pela ONU!), um
helicóptero da polícia começa a jogar para todos os lados bombas e muito, muito
gás lacrimogêneo. Sorte que haviam médicos de máscara que aplicavam leite de
magnésia ao redor dos olhos e muita cooperação entre os manifestantes com o
vinagre.
Subitamente, muita coisa começa a
acontecer e não dá pra apreender tudo. Um cara cai do viaduto e é socorrido
(sabemos que faleceu e que outra menina caiu, mas está bem agora), enquanto a
primeira frente de batalha com o cordão se intensifica; uma galera começa a
queimar coisas no meio da avenida e uma outra galera já está tirando os tapumes
que protegiam os vidros de uma concessionária e quebram todos os vidros. Bombas
dos dois lados e muito gás, gente que corre, gente que pede pra não correr. Uns
gritam “sem violência” enquanto outros aplaudem. Médicos voluntários atendendo
um garoto com bala de borracha no olho, enquanto vejo muitos encapuzados
quebrando tudo dentro da concessionária e médicos voluntários por toda a parte
ajudando os feridos. O batalhão de choque recuando muito na rua, pois já há uma
barricada com muita madeira queimando. A grande massa que no início gritava
“sem violência” agora já xinga os policiais e os ânimos só vão se exaltando e o
frenesi coletivo só vai aumentando. Pude sentir o que é uma horda insatisfeita,
pronta pra explodir. É contaminante até pra mim que sou adepto da cultura de
paz planetária e da resolução pacífica de conflitos. Não tem jeito. Olho pras
ruas ao redor e é gente do início ao final de onde consigo ver em todas as
vias. Não dá pra acreditar! Juro que nunca pensei que presenciaria isso. Não há
pra onde correr, não há como polícia nenhuma chegar ali. Um cara do meu lado é
quase linchado por tentar incendiar o posto de gasolina onde havia uma multidão.
Espalhou gasolina calmamente pelo chão e já ia acendendo um papel, quando um
desses anjos disfarçados de gente colocou-o para fora e ainda o protegeu quando
tentaram linchá-lo. Pegaram ele com o isqueiro na mão! Não é boato. Eu vi.
Enxotaram o cara de lá e não pude respirar aliviado, pois o gás não deixava.
Agora os encapuzados arrastam um caminhão de dentro da concessionária que já
está em chamas e colocam ele na fogueira da rua onde estava a barricada da
tropa de choque que agora recua mais ainda na ruela do conflito com o choque. A
manifestação continua lotada e só é dispersada nas “clareiras” abertas pelo
gás.
Não queria cair no discurso do
lugar comum da mídia de que “é apenas um pequeno grupo”, mas com certeza essa
galera do front não está brincando em serviço! Já li uns artigos e denúncias de
que existiria gente da polícia infiltrada, e acho que deva existir mesmo, mas
não acho que era esse o caso naquele dia, ou se era, eles estão muito bem no
disfarce. O que vi foi uma turma que não se importava se tinha gás, ou se não
tinha, estava lá no meio da fumaça, sem máscara, jogando o mundo no chão e
devolvendo os artefatos contra a tropa, enquanto bombas e tiros eram lançados
contra eles com maior intensidade. Invejei a coragem deles e refleti que, se
esses 100 mil tivessem tal grau de coragem e indignação, a cidade não parava em
pé e não tinha polícia, nem força nacional, que segurava a multidão não!
Desse momento em diante, não pude
presenciar mais, pois minha caravana do sindicato iria voltar para a nossa
cidade. Voltei sem saber de nada, ouvindo o triste desfecho de gato caçando
rato pelo centro da cidade, e a ocupação de tudo pela Polícia Militar e pela
Força Nacional. Ao mesmo tempo, eu estava feliz com a quantidade de gente que
havia visto mais cedo; triste pelos feridos e pelo morto, e muito impressionado
com a intensidade do combate e pelo frenesi coletivo. Ouvia no rádio que várias
rodovias em vários estados estavam paradas e que, ainda, várias cidades
protestavam, em especial, Brasília, que também apresentou combates. Não dá pra
apreender tudo, simplesmente não dá.
Pensando bem, há o risco sim, de
perda total do controle e da ordem social, mas será que não há que haver algum
caos para que se reestruture um sistema? Esses dias, li um depoimento de uma
pessoa que se auto intitula “vândalo” e agradece por o chamarem assim, pois os
vândalos foram o povo que derrubou (literalmente) o Império Romano, queimando
as instituições públicas e os parlamentos. Argumenta que as coisas e os prédios
públicos e privados não têm sentimentos para serem feridos, mas, ao serem
depredados, ferem os sentimentos daqueles que os amam. Disse que alguns grupos
se organizam antes, mas há também os indignados que, como ele, se juntam no
momento de fervor, além, é claro, como sabemos de outros relatos, dos
infiltrados da polícia que estão ali para ser o estopim, quando há muita paz no
evento e também há os relatos de grupos anarquistas que recebem treinamento de
guerrilha urbana, para destruir toda forma de poder instituído.
Não sei o que pensar. Não há como prever nada, mas vejo que o caos é
a coisa mais temida pelos poderosos e esse medo pode ser um freio para as
corrupções, mas também um estímulo para o uso da força excessiva. Vejo uma
mídia que consegue engolir tudo à sua volta e fazer tudo parecer clichê
instantaneamente. Uma mídia que, hoje nos jornais, só deu foco ao “vandalismo”
e ao “sangue” derramado. Não posso deixar de aceitar que o vandalismo tira a
credibilidade para a maioria que assiste TV e ouve rádio. Mas também não
desacredito no que disse o vândalo em sua entrevista. Assim, vejo PEC ser
derrubada pelos mesmos que a propuseram, vejo a corrupção ser considerada crime
hediondo, arquivos progressistas sendo desenterrados, deputado ser preso e
acabo de saber que São Paulo terá CPI dos transportes e que 20 cidades da
região metropolitana de Goiânia adotaram o passe livre (tarifa zero)
estudantil. Uai, mas não disseram que isto era impossível? E vejo assembleias
populares autogestionadas, sem aquele discurso empoeirado de partidos e
sindicatos, e vejo grupos de trabalho, discussão, redes sociais muito bacanas,
e vejo que quem não apoiava as nossas greves de professores, hoje nos dá
parabéns. Mas quero refletir mais algumas coisas. Primeiro, há sim o risco de
que tudo saia do controle e então isto pode se tornar um meio para um golpe e
uma ascensão autocrática. Mas pode também cair no senso comum e se diluir, e
sempre que houver um chamado para manifestações, a cidade vai virar o caos e
isto se tornará então uma arma de luta do povo, pois sempre haverá os vândalos,
pois eles, ou estão infiltrados pela polícia, ou estão na profissão de fé. Há o
risco de uma mídia dominante conseguir denegrir as manifestações e acontecer um
racha dentro da população o que, em grau extremo, daria numa guerra civil,
talvez de uma classe média moralizante brigando com encapuzados do morro, que
por sua vez brigariam com os partidos, que por sua vez brigariam com mais
alguém. Mas não acho que seja o caso; na verdade, espero que o caos
reestruturador possa ser conduzido da maneira mais consciente possível.
Participar das assembleias populares, ler as múltiplas opiniões, participar das
manifestações, ajudar nas redes sociais e nas conversas, atuar segundo o que
acredita e como pode, para chegarmos não sei onde, mas sabendo por quê. As
manifestações estão lindas, e é um momento único do povo. Não sei onde isso
tudo vai dar, mas pago pra ver. Quiçá cheguemos a uma sociedade mais justa,
solidária, cooperativa e sustentável.
E para finalizar, indico um documentário sobre os protestos contra a reunião da OMC em Seattle, 1999. Qualquer semelhança não é mera coincidência!