sábado, 29 de junho de 2013

Reflexões sobre 26 de junho - Manifestação em BH

Inicio pedindo desculpas pela extensão do texto, mas não poderia ser diferente, pois eu estava lá.
Dia 26 de junho de 2013. E não sei por que os jornais estão falando de trinta, quarenta mil manifestantes, quando eu não tive como ter ideia do tamanho, pois ele extrapolava o comprimento e a largura das avenidas. Eu arriscaria muito mais de cem mil e tenho filmagens para confirmar. E eu que achava que os professores faziam proeza em Minas quando conseguiam colocar dez mil nas ruas...  Hoje, já revigorado do surto e dos sustos de ontem, tentarei tecer algumas descrições e análises que vejo pertinentes neste momento, sabendo que tudo, até mesmo minha opinião, estão muito instáveis e não conseguem, nem mesmo, um panorama estável do que está acontecendo.


Estive lá e vi –digo, filmei – de cima do viaduto do Hospital Belo Horizonte, último ponto alto da Antônio Carlos com vista para o centro, e não dava pra ver o início da manifestação nem seu final, com a avenida e os viadutos completamente tomados. Na passagem pelas periferias da via, moradores que acenavam, muitas bandeiras do Brasil nas janelas e muitas, muitas crianças participando. Debaixo de outro viaduto, vi adultos e vi crianças que não participavam e permaneceram dentro de suas casas de papelão. Provavelmente alguma família despejada para as obras da Copa. Inúmeros cartazes que traziam as catarses sociais de nossos tempos. Como já havia dito em outra postagem, compactuo com quase todos os cartazes e não vi desta vez nada que atacasse os direitos humanos ou a diversidade; pelo contrário, muitos estavam ali com bandeiras de partidos e sindicatos enquanto outros colocavam num viaduto duas faixas gigantes clamando pelo direito dos animais. Uns fizeram rapel de uma passarela e exibiram seus cartazes de cabeça para baixo. Nem precisava dos cartazes, pois só o espetáculo já valia. Meu Deus, quando iriam deixar uns loucos fazerem rapel em plena Antônio Carlos? 
Pouquíssimo policiamento. Um grande carnaval com muita música, palavras de ordem, vendedores de água, refrigerante, cerveja e picolé. Alguns carros e pequenos comércios vendendo churrasquinho e cachorro quente, justamente perto do viaduto onde clamavam pelo direito dos animais. Vi dois indivíduos improvisados que vendiam, de dentro de um lote baldio, marmitinhas e tropeiros por entre os entulhos e a cerca semi-derrubada, num local tomado pelo mato. Uma festa bonita, com muitas bandeiras vermelhas de partidos, movimentos sociais de base. Nosso sindicato foi muito respeitado, a ponto de muitos manifestantes levarem os balões e os botons que distribuíamos. Vi a galera do MST em peso, outros sindicatos e movimentos sociais autônomos, como “os atingidos pela copa” e “os atingidos por barragens”. Vi bandeiras pretas dos anarquistas, graças a Deus! Alguns heavy-metals andando juntos e um grupo de darks com seus sobretudos pretos num sol escaldante. Muitos meninos e meninas adolescentes, tirando fotos com pose, provavelmente para postar no facebook. Uma diversidade interessante e, até mesmo, desconcertante. Como pode, repentinamente, uma atuação tão massiva, com uma variedade tão grande de segmentos sociais e esferas culturais? Não vi quase nada sobre a questão indígena, nem sobre a obrigatoriedade do serviço militar e do voto. Vi duas feministas completamente nuas, porém mascaradas e poucas pessoas pichando frases contra a copa do mundo. Havia uma Penélope Charmosa encapuzada, toda de rosa, empurrando um carrinho de supermercado rosa e ia pixando de rosa suas causas no chão da avenida. Muita, mas muita diversidade mesmo! 

Mas, chegando perto do Mineirão, comecei a notar um clima mais tenso! O carro de som que ia na frente seguiu direto, chamando  para que não entrássemos na rua do Mineirão (acordo feito com o governador no dia anterior) enquanto alguns poucos (penso que uns 20 ou 30) manifestantes tentaram fazer um cordão de isolamento sem sucesso. Assim, enquanto metade da manifestação, coordenada pelos sindicatos e movimentos sociais ligados a partidos seguiram em frente para esbarrar no final da avenida numa barricada policial, e ser obrigado a voltar pelo mesmo caminho, a outra metade parou na região da UFMG  e muita gente (uns 5 ou 10 mil) subiu para chegar perto do isolamento de 2Km da Fifa na “avenida proibida”. Aí foi o aval para começar o combate, já previsto em manchetes da véspera, pela própria polícia, com anúncios prévios de “tolerância zero” e “campo de guerra iminente”. Depois de alguns usuais (já aceitos como normais pela mídia) tiros e explosões de efeito imoral e de armas químicas de pequeno impacto (uai, achei que elas eram proibidas pela ONU!), um helicóptero da polícia começa a jogar para todos os lados bombas e muito, muito gás lacrimogêneo. Sorte que haviam médicos de máscara que aplicavam leite de magnésia ao redor dos olhos e muita cooperação entre os manifestantes com o vinagre.
Subitamente, muita coisa começa a acontecer e não dá pra apreender tudo. Um cara cai do viaduto e é socorrido (sabemos que faleceu e que outra menina caiu, mas está bem agora), enquanto a primeira frente de batalha com o cordão se intensifica; uma galera começa a queimar coisas no meio da avenida e uma outra galera já está tirando os tapumes que protegiam os vidros de uma concessionária e quebram todos os vidros. Bombas dos dois lados e muito gás, gente que corre, gente que pede pra não correr. Uns gritam “sem violência” enquanto outros aplaudem. Médicos voluntários atendendo um garoto com bala de borracha no olho, enquanto vejo muitos encapuzados quebrando tudo dentro da concessionária e médicos voluntários por toda a parte ajudando os feridos. O batalhão de choque recuando muito na rua, pois já há uma barricada com muita madeira queimando. A grande massa que no início gritava “sem violência” agora já xinga os policiais e os ânimos só vão se exaltando e o frenesi coletivo só vai aumentando. Pude sentir o que é uma horda insatisfeita, pronta pra explodir. É contaminante até pra mim que sou adepto da cultura de paz planetária e da resolução pacífica de conflitos. Não tem jeito. Olho pras ruas ao redor e é gente do início ao final de onde consigo ver em todas as vias. Não dá pra acreditar! Juro que nunca pensei que presenciaria isso. Não há pra onde correr, não há como polícia nenhuma chegar ali. Um cara do meu lado é quase linchado por tentar incendiar o posto de gasolina onde havia uma multidão. Espalhou gasolina calmamente pelo chão e já ia acendendo um papel, quando um desses anjos disfarçados de gente colocou-o para fora e ainda o protegeu quando tentaram linchá-lo. Pegaram ele com o isqueiro na mão! Não é boato. Eu vi. Enxotaram o cara de lá e não pude respirar aliviado, pois o gás não deixava. Agora os encapuzados arrastam um caminhão de dentro da concessionária que já está em chamas e colocam ele na fogueira da rua onde estava a barricada da tropa de choque que agora recua mais ainda na ruela do conflito com o choque. A manifestação continua lotada e só é dispersada nas “clareiras” abertas pelo gás.
Não queria cair no discurso do lugar comum da mídia de que “é apenas um pequeno grupo”, mas com certeza essa galera do front não está brincando em serviço! Já li uns artigos e denúncias de que existiria gente da polícia infiltrada, e acho que deva existir mesmo, mas não acho que era esse o caso naquele dia, ou se era, eles estão muito bem no disfarce. O que vi foi uma turma que não se importava se tinha gás, ou se não tinha, estava lá no meio da fumaça, sem máscara, jogando o mundo no chão e devolvendo os artefatos contra a tropa, enquanto bombas e tiros eram lançados contra eles com maior intensidade. Invejei a coragem deles e refleti que, se esses 100 mil tivessem tal grau de coragem e indignação, a cidade não parava em pé e não tinha polícia, nem força nacional, que segurava a multidão não!
Desse momento em diante, não pude presenciar mais, pois minha caravana do sindicato iria voltar para a nossa cidade. Voltei sem saber de nada, ouvindo o triste desfecho de gato caçando rato pelo centro da cidade, e a ocupação de tudo pela Polícia Militar e pela Força Nacional. Ao mesmo tempo, eu estava feliz com a quantidade de gente que havia visto mais cedo; triste pelos feridos e pelo morto, e muito impressionado com a intensidade do combate e pelo frenesi coletivo. Ouvia no rádio que várias rodovias em vários estados estavam paradas e que, ainda, várias cidades protestavam, em especial, Brasília, que também apresentou combates. Não dá pra apreender tudo, simplesmente não dá.
Pensando bem, há o risco sim, de perda total do controle e da ordem social, mas será que não há que haver algum caos para que se reestruture um sistema? Esses dias, li um depoimento de uma pessoa que se auto intitula “vândalo” e agradece por o chamarem assim, pois os vândalos foram o povo que derrubou (literalmente) o Império Romano, queimando as instituições públicas e os parlamentos. Argumenta que as coisas e os prédios públicos e privados não têm sentimentos para serem feridos, mas, ao serem depredados, ferem os sentimentos daqueles que os amam. Disse que alguns grupos se organizam antes, mas há também os indignados que, como ele, se juntam no momento de fervor, além, é claro, como sabemos de outros relatos, dos infiltrados da polícia que estão ali para ser o estopim, quando há muita paz no evento e também há os relatos de grupos anarquistas que recebem treinamento de guerrilha urbana, para destruir toda forma de poder instituído.

Não sei o que pensar.  Não há como prever nada, mas vejo que o caos é a coisa mais temida pelos poderosos e esse medo pode ser um freio para as corrupções, mas também um estímulo para o uso da força excessiva. Vejo uma mídia que consegue engolir tudo à sua volta e fazer tudo parecer clichê instantaneamente. Uma mídia que, hoje nos jornais, só deu foco ao “vandalismo” e ao “sangue” derramado. Não posso deixar de aceitar que o vandalismo tira a credibilidade para a maioria que assiste TV e ouve rádio. Mas também não desacredito no que disse o vândalo em sua entrevista. Assim, vejo PEC ser derrubada pelos mesmos que a propuseram, vejo a corrupção ser considerada crime hediondo, arquivos progressistas sendo desenterrados, deputado ser preso e acabo de saber que São Paulo terá CPI dos transportes e que 20 cidades da região metropolitana de Goiânia adotaram o passe livre (tarifa zero) estudantil. Uai, mas não disseram que isto era impossível? E vejo assembleias populares autogestionadas, sem aquele discurso empoeirado de partidos e sindicatos, e vejo grupos de trabalho, discussão, redes sociais muito bacanas, e vejo que quem não apoiava as nossas greves de professores, hoje nos dá parabéns. Mas quero refletir mais algumas coisas. Primeiro, há sim o risco de que tudo saia do controle e então isto pode se tornar um meio para um golpe e uma ascensão autocrática. Mas pode também cair no senso comum e se diluir, e sempre que houver um chamado para manifestações, a cidade vai virar o caos e isto se tornará então uma arma de luta do povo, pois sempre haverá os vândalos, pois eles, ou estão infiltrados pela polícia, ou estão na profissão de fé. Há o risco de uma mídia dominante conseguir denegrir as manifestações e acontecer um racha dentro da população o que, em grau extremo, daria numa guerra civil, talvez de uma classe média moralizante brigando com encapuzados do morro, que por sua vez brigariam com os partidos, que por sua vez brigariam com mais alguém. Mas não acho que seja o caso; na verdade, espero que o caos reestruturador possa ser conduzido da maneira mais consciente possível. Participar das assembleias populares, ler as múltiplas opiniões, participar das manifestações, ajudar nas redes sociais e nas conversas, atuar segundo o que acredita e como pode, para chegarmos não sei onde, mas sabendo por quê. As manifestações estão lindas, e é um momento único do povo. Não sei onde isso tudo vai dar, mas pago pra ver. Quiçá cheguemos a uma sociedade mais justa, solidária, cooperativa e sustentável. 


E para finalizar, indico um documentário sobre os protestos contra a reunião da OMC em Seattle, 1999. Qualquer semelhança não é mera coincidência!

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